Dentre todas as tristes heranças que a censura deixou a nós brasileiros, creio que a pior delas tenha sido o salvo-conduto para a putaria explícita que hoje se lê e assiste, promovida – no sentido mais promovedor da palavra – por grande parte da imprensa, principalmente a televisiva. Diz-se putaria, mas já se pede o necessário perdão às profissionais do sexo, pela analogia de mau gosto, que ameaça desvalorizar suas atividades.
Diante de um mínimo limite ético ou legal, ouvem-se os clássicos gritos de “censura”, coroados com o não menos clássico e falacioso bordão de que “querem novamente acabar com a liberdade de imprensa no Brasil, voltar com os anos de chumbo”. E, enquanto nada se faz a respeito, cornos espetaculosos como os lindembergs, garotinhas vítimas como as eloás e isabellas, além dos bandidões malvadões como os sandros e champinhas continuam invadindo nossas casas, sem pedir licença, e, o que é pior, por meio de um serviço público, que é o “de radiodifusão sonora e de sons e imagens”, conforme se infere do art. 223 da Constituição Federal.
Nenhum direito é absoluto, muito menos o que garante a liberdade de imprensa, que só se legitima na medida em que atende aos interesses da sociedade, ou seja, desde que desempenhe uma função social, que nada tem a ver com a exibição nacional de um adulto mimado apontando uma arma para a cabeça de uma menina. Aliás, como já anteriormente tratado, tal exibição só fomenta a conduta dessas pobres vítimas abandonadas, que querem exibir sua dor a todos e, se possível, aparecer na televisão, gerando um efeito em cadeia, como o que conduziu à vedação ética à cobertura de suicídios. Queria ter nas mãos estudos que apontassem o número de mulheres gravemente feridas ou mortas por seus ex-namorados desde o começo do ano passado, o número de recém-nascidos abandonados desde que uma mulher abandonou seu filho na Lagoa da Pampulha, bem como o número de crianças mortas desde a defenestração da menina Isabella.
Caso ainda não se tenha percebido, ao contrário do que se propala por aí, quem promove a censura hoje é a própria imprensa libertina, que cerceia nossa liberdade de escolha ao exibir ininterruptamente esses crimes e seus atores, protagonistas da quotidiana e cômica miséria humana, os quais somente incrementam a sensação de pânico e insegurança com que já convive a sociedade. E ai de quem for contra.
A esse respeito, disse o filósofo Paul Valadier:
"Isso se percebe, em um primeiro nível, no desvio de sentido da referência aos direitos humanos para dar crédito a práticas libertárias: assim, não somente toda idéia de censura provoca indignação (mesmo se pessoas ou grupos são caricaturados, ou mesmo caluniados, por algum filme ou publicidade), mas a liberdade de expressão é invocada para justificar o que se deve chamar pornografia ou exibicionismo. [...] O apelo à liberdade, inscrito nos direitos do homem, serve de cobertura a formas de licenciosidade [...]." (Moral em desordem: um discurso em defesa do ser humano, p. 42).
Há um discurso perverso, segundo o qual, amparada na proibição à censura, a imprensa se dá o poder de fazer tudo, absolutamente tudo o que lhe for mais conveniente – entenda-se lucrativo –, inclusive cercear nossa liberdade de ler ou assistir programas que nos informem, contribuam para nossa educação e formação cultural, sempre respeitando valores éticos e sociais (art. 221, I e IV, da CF). Eu e você não podemos dirigir em velocidade acima da permitida, não podemos ouvir música em alto volume na madrugada, porque nossos direitos não são absolutos, esbarram nos dos outros. Contudo, somos diariamente obrigados a ouvir a Sônia Abrão, a Luciana Gimenez, a Ana Maria Braga e o Britto Jr. falando ao telefone com um seqüestrador ou opinando, com ar de autoridade, sobre segurança pública. Além disso, somos obrigados a ouvir um Zé Datena chamar pessoas de “imbecis”, como se fosse o dono da sabedoria, do discurso certo, verdadeiro arauto da moral e dos bons costumes. Pornografia pura...
Estava certo o comandante da Polícia Militar paulista – o que não apaga a enorme lambança que lá se consumou –, ainda que tivessem atirado no Histrião de Santo André, teriam sido duramente criticados. Não há escapatória para a fome de tragédia na busca pela audiência, afinal as empresas televisivas, dentre outras, vivem de lucros e, numa competição em que os fins justificam os meios, quanto mais tragédia melhor.
"A capacidade reprodutora de violência dos meios de comunicação é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor excitar a indignação moral, basta que a televisão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que, imediatamente, as demandas de papéis vinculados ao estereótipo assumam conteúdos de maior crueldade e, por conseguinte, os que assumam o papel correspondente ao estereótipo ajustem sua conduta a estes papéis." (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 131).
É de se cogitar se outro não teria sido o desfecho, caso a polícia abandonasse o local, recusando-se a figurar no centro do picadeiro de um circo que já havia sido montado. Enquanto houver quem lhes dê atenção, lindembergs se multiplicarão dia após dia, na tentativa de exibir sua dor e, assim, corresponder da melhor forma possível ao papel que o olhar das câmeras dele espera. Com isso, diante da plena impossibilidade de se cuidar das obsessões e patologias de cada uma das pessoas que compõem a sociedade, deduz-se que o que deve ser contido é justamente o olhar dessas câmeras sedentas de tragédia. Instrumentos legais para isso não faltam, o que leva a crer que o que não há é coragem de enfrentar a inquisição e por ela também ser queimado na fogueira, sob acusação de bruxaria.
Barroso da Costa
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Um comentário:
pois é meu caro... eu me lembro dos tempos da censura e não quero de jeito nenhum isso de volta, mas a falta de limites da imprensa de rapina é repugnante. Muito boas as suas colocações
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